Quem sou, qual minha metade, de onde eu venho?

Who am I, what is my moiety, and where do I come from?

Sou indígena Kaingang, sou uma mulher Kaingang, criada por outras mulheres Kaingang, guerreiras, mães, avós, responsáveis pela vida. Na nossa tradição, são as mulheres que plantam, colhem e que alimentam. A relação dessas mulheres com a terra é essencial para promover a vida. As escolhas dos caminhos que estou trilhando, dentro e fora da minha aldeia, e no espaço acadêmico, foram decididas ou influenciadas por todas nós: por mim e por elas.
I am Kaingang, a Kaingang woman, raised by other Kaingang women: warriors, mothers, grandmothers – those responsible for life. In our tradition, it is women who plant, harvest, and nourish. The relationship of these women with the land is essential to promote life. The paths I tread, within and beyond my village and in academic spaces, were chosen by all of us: by me and by them.
Ocupamos, desde tempos imemoriais, antes deste país ter o nome de Brasil, o território kaingang, que já teve uma grande extensão, desde o estado de São Paulo até o Rio Grande do Sul, seguindo até Misiones, na Argentina. Para nós, a terra é parte do ser kaingang. Para nós, é importante estar no nosso território. Não são apenas as nossas casas e as nossas comunidades que fazem parte deste espaço; é nele que estão os nossos espíritos: os espíritos dos nossos antepassados, os espíritos das matas, das águas, dos animais. Nós e eles formamos o nosso povo, estamos ligados pela espiritualidade. O território tradicional é essencial para que possamos ser completos, para que possamos ser Kaingang.
We have occupied Kaingang territory since time immemorial, before this country had the name Brazil. Our land was extensive; from the state of São Paulo to Rio Grande do Sul, all the way to Misiones in Argentina. For us, the land is part of being Kaingang. For us, it is important to be in our territory. It is not just our houses and our communities that are part of this space. Here are our spirits: the spirits of our ancestors, the spirits of the forests, the waters, and the animals. They and we form our People—we are linked by spirituality. Our traditional territory is essential for us to be complete, so that we can be Kaingang.
Os kofa, que são os nossos avós, me contaram uma história de dois irmãos gêmeos, Kamé e Kanhru. Esses irmãos criaram todas as coisas. Kamé criou tudo que é riscado e comprido e Kanhru criou tudo que é redondo e malhado. Eles casaram os filhos de um com as filhas do outro e, desses casamentos, nasceram os Kaingang.
The kofa, who are our grandparents, told me a story of two twin brothers, Kamé and Kanhru. These brothers created all things. Kamé created all that is striped and long and Kanhru created all that is round and mottled. Their sons and daughters married, and from these marriages, the Kaingang were born.
Para os Kaingang, tudo é complementar, porque somos formados do dualismo de Kamé e Kanhru, que simboliza a carne o espírito, o dia e a noite, o sol e a lua, o calor e o frio, o fogo e água, o masculino e o feminino. Para nós, tudo é complementar, nada vive sem o outro. Não podemos ser só a carne sem o espírito, não podemos viver sem a água, sem o ar, sem o alimento, sem partilha, sem o outro; e a terra é o princípio de tudo isso.
For the Kaingang, everything is complementary, because we are formed from the dualism of Kamé and Kanhru. They symbolize the flesh and spirit, day and night, sun and moon, heat and cold, fire and water, masculine and feminine. For us, everything is complementary; nothing lives without the other. We cannot be only flesh with no spirit. We cannot live without water, air, food, without sharing, without the other. The land is the beginning of all this.
Minha terra chamava Fág Kavá (Pinheiro Ralo). Era uma grande área, que tinha sua extensão medida pela mata de araucária.[1] Ela se juntava a outra terra indígena, hoje conhecida como Terra Indígena Nonoai. Por volta de 1860, o governo do Brasil tinha uma política para tirar os indígenas do mato, expulsando os grupos das matas e levando-os para os aldeamentos. A política de aldeamentos nos deixou ilhados em pequenos territórios. O território tradicional de Fag Kavá, hoje chamado de Terra Indígena Serrinha, foi gradativamente sendo loteado e vendido, pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul, para os imigrantes europeus que vinham da colônia velha do estado do Rio Grande do Sul, das cidades de São Leopoldo, Sapucaia até Caxias do Sul, e que retiraram as araucárias e derrubaram as matas. No início de 1960, os últimos Kaingang de Fág Kavá foram obrigados a deixar a sua terra, jogados em caminhões, alguns amarrados e levados para o aldeamento de Nonoai. E nossa aldeia foi extinta. Posso dizer que deixamos de ser ilhados para ser náufragos.
My land was called Fág Kavá (Pinheiro Ralo, Low Pine). It was a large area that corresponded with the araucaria forest.[1] It joined with another Indigenous land, today known as Terra Indígena Nonoai . Around 1860, the government of Brazil had a policy of removing Indigenous people from the forest, expelling them from the woods and taking them to aldeamentos, or settlements. The policy of aldeamentos left us stranded in small territories. The traditional territory of Fag Kavá, today called Terra Indígena Serrinha, was gradually made into lots and sold by the government of Rio Grande do Sul State to European immigrants. They came from the old colonies of Rio Grande do Sul, from the cities of São Leopoldo, Sapucaia, and even Caxias do Sul. They cleared away the araucarias, and they cut down the forests. In the early 1960s, the last Kaingang from Fág Kavá were forced to leave their land, thrown in trucks, some tied up, and taken to the aldeamento at Nonoai. And our village was extinguished. I could say that we went from being marooned to being castaways.
Muitos indígenas Kaingang não acostumaram na outra aldeia, mas eram obrigados a ficar ali, por funcionários do SPI [Serviço de Proteção ao Índio].[2] Alguns fugiam e voltavam para trabalhar como empregados nas lavouras dos colonos, no território que um dia foi a sua casa, pois não conseguiam viver longe da sua terra. Muitos povos indígenas no Brasil viveram situações semelhantes, como os Terena e os Kaiowá.
Many Kaingang never adapted to the other village, but they were obliged to stay by employees of the Serviço de Proteção ao Índio (SPI, the Indian Protective Service).[2] Some ran away, returning to work as employees of the colonial farms in the territory that once had been their home—they were unable to live far from their land. Many Indigenous peoples lived through similar situations, such as the Terena and the Kaiowá.
Respaldados pela Constituição Federal de 1988, em 1992, montamos acampamento e iniciamos um processo de luta pela retomada da nossa terra. A maior preocupação dos nossos velhos era morrer fora do território, longe dos espíritos dos antepassados. Naquela época, eu ainda era uma criança e lembro do acampamento, das conversas dos mais velhos, nossos kofá, em volta do fogo. Em 1997, estávamos de volta, com nossa terra demarcada.
Backed by the Federal Constitution of 1988, we established an encampment and began the process of fighting to reclaim our land in 1992. Our greatest concern was that our elders would die outside of our territory, far away from the spirits of our ancestors. During that time, I was still a child. I remember the camp and the conversations with the eldest among us, our kofá, sitting around the fire. By 1997 we were back, our territory demarcated.
É importante falar desse movimento da minha terra, que aproxima e exemplifica as diversas reinvindicações de outros povos indígenas, e mesmo dos Kaingang de outros territórios tradicionais, que se iniciaram após a promulgação da Constituição Federal. É interessante perceber que nós temos organizado nossas lutas sempre trazendo a memória dos nossos kofá, acessando as potências das nossas tradições, pinturas corporais, língua, artesanatos, cosmologias. E, como bem disse a Márcia Mura, nas palavras da Graça Graúna, temos alimentado continuamente a nossa fogueira ancestral.
It is important to speak of this movement for our land, which approximates and exemplifies the diverse claims of other Indigenous peoples, and even of Kaingang of other traditional territories, which began after the ratification of the Federal Constitution. It is interesting to note that we have organized our struggles always bringing the memory of our kofá with us, and accessing the potential of our traditions, body decoration, language, artesanato,[*] cosmologies. And just as Márcia Mura says, in the words of Graça Grúna, we have continually fed our ancestral fire.
Quem está presente no movimento indígena, trazendo, para os espaços de atuação, cantos, pinturas, danças, artes; quem já esteve no ATL [Acampamento Terra Livre], cujo tema de 2017 foi “Nossa história não começa em 1988 #MarcotemporalNão,[3] compreende a potência da qual eu falo. Em 2017, durante 4 dias (24 a 28 de abril, em Brasília), tivemos no acampamento mais de 3.000 indígenas, reagindo à maior ofensiva contra os direitos dos povos indígenas. Foram discutidos vários problemas, como a paralisação das demarcações indígenas; o enfraquecimento das instituições e políticas públicas indigenistas; as proposições legislativas anti-indígenas que tramitam no Congresso; a tese do “Marco Temporal,” pela qual só devem ser consideradas Terras Indígenas as áreas que estavam de posse de comunidades indígenas na data de promulgação da Constituição (05/10/1988). Estamos presenciando a atuação da bancada ruralista no Congresso Nacional, desconstruindo tudo o que os povos indígenas possuem de positivo, o modo de vida, de plantio, de cosmologias. Cooptando lideranças, como é o caso de alguns caciques no Sul do Brasil ou de prefeitos indígenas no Estado do Amazonas, que são favoráveis à mineração.
Those who are part of the Indigenous movement bring to our spaces songs, paintings, dance, and art; those who have already been in the Acampamento Terra Livre (Free Land Camp), with the 2017 theme “Our History Did Not Begin in 1988 #MarcoTemporalNão[3]: they will understand the potential of which I speak. In 2017, for four days (24 to 28 of April, in Brasília), we had 3,000 Indigenous people in the Camp. We were reacting to the greatest offensive yet against the rights of Indigenous peoples. We discussed various problems: the paralysis afflicting Indigenous land demarcations; the weakening of indigenist institutions and public policies; anti-Indigenous legislative proposals being discussed in Congress; the legal concept of Marco Temporal (“time limit”), whereby only areas that were occupied by Indigenous communities on the date of enactment of the Constitution—October 5, 1988—should be considered Indigenous Lands. We are witnessing the destructive actions of the Rural Caucus in the National Congress who are working to deconstruct all of the positive aspects Indigenous peoples possess: our way of life, our way of planting seeds, our cosmologies. They co-opt Indigenous leaders who favor mining, such as the case of some chiefs in the South of Brazil, or some Indigenous mayors in the state of Amazonas.
Mas essa performance (atuação) do movimento indígena se fortalece pelo reconhecimento de direitos dos Povos Indígenas: seja o reconhecimento de suas identidades étnicas, como muito se falou na mesa da manhã desse Seminário “25 Anos de História dos Índios no Brasil”, seja na luta pelos territórios nos processos de demarcação e nas batalhas pela efetivação das ações afirmativas nas universidades. Nós, acadêmicos indígenas, trazemos a atuação do movimento indígena para a academia, apresentando uma nova nuance de luta. Antes, o movimento estava do lado de fora, reivindicando o acesso, hoje, os sujeitos do movimento estão dentro das instituições de ensino.
But these actions of the Indigenous Movement are strengthened by the recognition of Indigenous Peoples’ rights, whether the right to recognition of ethnic identity, in the fight for our territories in the process of demarcation, or in our battle for the true implementation of affirmative action in universities. We, Indigenous academics, bring the work of the Indigenous movement to the academy, presenting new nuance to the struggle. Before, the movement was on the outside, demanding access. Today, the subjects of the movement are within educational institutions.
Tenho feito essa reflexão a partir da atuação dos estudantes indígenas, de graduação e pós-graduação, nos espaços criados por nós, para estas atuações, como o Encontro Nacional de Estudantes Indígenas (ENEI). Em sua 5ª edição, neste ano de 2017, em Salvador, pautando a luta indígena, o tema foi: “Espaço de afirmação, protagonismo e diálogos interculturais: descolonizando o pensamento”. E a escolha do tema foi para mostrar o protagonismo dos estudantes indígenas no contexto acadêmico, valorizando o movimento indígena nacional, sobretudo o movimento indígena do Nordeste do Brasil. Buscamos dar visibilidade e demarcar os diferentes espaços no ensino superior, tendo como perspectiva a tentativa de descolonizar o conhecimento e os saberes sobre os povos indígenas e de mostrar suas lutas e resistências.
I reflect from the starting point of the actions of Indigenous students, undergraduate and graduate, in spaces we have created for these ends, such as the Encontro Nacional de Estudantes Indígenas (ENEI, National Meeting of Indigenous Students). In Salvador in 2017, now in its fifth year, the theme highlighted the Indigenous Movement: “Spaces of Affirmation, Protagonism, and Intercultural Dialogue: Decolonizing Thought.” The theme was chosen to show the leadership of Indigenous students in the academic context, and to valorize the national Indigenous movement, particularly the Indigenous movement in the Brazilian Northeast. We sought to make visible and demarcate different spaces of higher education, from the perspective of trying to decolonize knowledge and learning about Indigenous peoples, as well as showing our struggle and resistance.
Os estudantes indígenas do Sul do Brasil também têm organizado seus encontros, trazendo para a pauta as demandas de lutas regionais. O palco desses encontros são as universidades. O primeiro foi a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul; neste ano de 2017, foi na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), entre os dias 30 de novembro e 01 de dezembro, com o tema: “A Universidade como Território Indígena: pensando caminhos para a interculturalidade”. O encontro reuniu estudantes indígenas da região Sul para tecer olhares a partir da concepção das alteridades indígenas que hoje fazem os espaços acadêmicos. O objetivo foi impactar positivamente a Universidade pública, situando-a como uma mediadora capaz de contribuir para a implementação de políticas públicas adequadas à vida indígena contemporânea nesse espaço acadêmico.
Indigenous students from the South of Brazil have also organized meetings, bringing to the agenda demands that have emerged from regional struggles. The stage for these meetings has been the university. The first meeting was held at the Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) in Rio Grande do Sul. This year, in 2017, the meeting took place from the 30th of November to the 1st of December at the Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), and focused on the theme: “The University as Indigenous Territory: Thinking Paths for Interculturality.” The meeting brought together Indigenous students from the South to weave olhares (visions/perspectives) from the conception of Indigenous alterities that today make up academic spaces. The goal was to positively impact the public university, and position it as a mediator capable of contributing to the implementation of public policies suited to contemporary Indigenous life in these academic spaces.
Esses acadêmicos indígenas atuantes no movimento nacional e nos movimentos regionais organizaram, junto com as demais lideranças indígenas, o Acampamento Terra Livre Sul (ATL-Sul) na Terra Indígena Goj Vêso, em Iraí (Rio Grande do Sul), com o tema “Direitos territoriais, autodeterminação e sistemas produtivos nos territórios indígenas”, entre os dias 14 e 16 de dezembro de 2017. Discutiram direito territorial como garantia do bem viver. Nesses espaços aqui mencionados tenho observado a atuação potente dos antropólogos indígenas e das mulheres indígenas.
These Indigenous academics—active in both national and regional movements—organized, together with other Indigenous leaders, the Acampamento Terra Livre Sul (ATL-Sul, Free Land Camp of the South) in the Terra Índigena Goj Vêso in Iraí, Rio Grande do Sul. The theme was “Territorial Rights, Auto-determination, and Productive Systems in Indigenous Territories,” and the meeting took place from the 14th to the 16th of December 2017. They discussed territorial rights as a guarantee of bem viver (good living). In these spaces that I have mentioned, I have observed the potent action of Indigenous anthropologists and Indigenous women.
Trouxe esta fala porque 25 anos após a publicação do livro “História dos Índios no Brasil” muitas coisas têm acontecido, entre violências e retrocessos. Mas também os indígenas têm se mostrado; e continuamos lutando e desconstruindo a história contada até pouco tempo atrás.
I offer this talk because twenty-five years after the publication of the book História dos Índios no Brasil many things have happened, between violence and setbacks. But also, Indigenous people have proven ourselves; and we continue to struggle and to deconstruct the history that was told until recently.

Translation by Rosanna Dent

[1] Nota dos editores: Araucaria Angustifolia.
[1] Guest editors’ note: Araucaria angustifolia.
[2] O Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão que visava proteção e integração dos índios, foi criado em 1910 e atuou até 1967, quando foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), ainda hoje atuante (nota dos editores).
[2] Guest editors’ note: The SPI  was the government agency charged with the protection and integration of Indigenous peoples. It was created in 1910 and functioned until 1967 when it was replaced by the Fundação Nacional do Índio (FUNAI, the National Indian Foundation), which continues to function today.
[3] Acampamento Terra Livre – ATL, montado anualmente em Brasília, Capital Federal, é organizado pela APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e instituições parceiras. Completou em 2018 sua 15edição (apibbsb@gmail.com).
[3] The Acampamento Terra Livre, or Free Land Camp, set up (April 2018) in the federal capital of Brasília, is organized by APIB, the Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Brazil’s Indigenous Peoples Articulation) and partner organizations. 2018 marked the fifteenth occurrence.
[*] Translator’s note: Material arts, often translated as handicrafts.

 

Authors
Joziléia Daniza Kaingang: contributions / danikjj@hotmail.com / Universidade Federal de Santa Catarina